terça-feira, 26 de julho de 2011

Sobre forró, música sertaneja e roupas de inverno no sertão nordestino

Desde a postagem sobre o Carnaval, em março deste ano, decidi utilizar a festa de São João como objeto de análise no A Sorte Nos Dirá Que Sim. Confesso que nessas férias peguei estrada planejando depurar e transcrever criticamente o atual momento cultural e musical deste período do ano, no entanto, mesmo que aspectos específicos tenham causado grata surpresa, a maior parte do que vi permaneceu nos limites esperados.

Igreja de Nossa Senhora da Saúde
Localizado na região do Médio São Francisco, Tacaratu é um município do estado de Pernambuco e seu nome, de origem indígena, significa "serra de muitas pontas ou cabeças". Com área de 1.253,7 km² e população estimada de 20.552 habitantes, toda a sua economia é gerada a partir do artesanato e da indústria têxtil comercializados em outros estados do país e até mesmo no exterior. Apesar de pequena, Tacaratu não é muito diferente das outras cidades brasileiras no que diz respeito à desigualdade social; a riqueza é distribuída de maneira desigual e se concentra na menor parcela da população.

Crianças eternizando a cultura
Em parceria com o governo do Estado e a Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), a prefeitura local organizou e promoveu em 2011 os tradicionais festejos de São João. O evento vem se se repetindo há aproximadamente 10 anos e geralmente apresenta diversas atrações culturais, shows de música e ornamentação de acordo com os costumes. Desta vez recordo-me especialmente das quadrilhas, dos grupos infantis dançando coco e do grupo de xaxadoCabras de Lampião”. Todos estes representaram com muita dignidade e beleza, diga-se de passagem, a cultura nordestina, contudo, é justamente onde se apresentaram as bandas, os ditos protagonistas da festa, que se viu o verdadeiro lugar de destaque. O enorme palco, que destoava da paisagem e das tradições juninas, de forma nada silenciosa, se impôs e, incorporando-se ao ambiente, passou a servir, inclusive, de palanque eleitoral para os políticos envolvidos na realização do evento. Aproveitando-se do atraso das bandas e dos intervalos entre elas, o apresentador não poupou elogios e bajulações aos doutores, às famílias tradicionais, aos políticos e até mesmo à primeira dama da cidade.

Concedo destaque negativo ao palco da cidade não pelas bandas que lá se apresentaram, até porque a grande maioria correspondeu à tradição e privilegiou a música regional, mas, ao saber dos montantes gastos e de todo o dinheiro público que vem sendo investido com certa frequência nesse tipo de evento, enquanto a população pobre vem sofrendo com a fome e o desemprego, foi impossível não me remeter ao que temos discutido aqui no blog. O que vi em Tacaratu, e tenho bons motivos para acreditar que não é diferente no restante do país, é o mais claro exemplo da utilização de elementos da cultura como instrumento de manipulação e comércio. É notável, através de fragmentos colhidos nos discursos de algumas pessoas, certo contentamento com a realização dessas super festas. Na opinião delas, a grande força da festa e sua repercussão nas cidades vizinhas são traços característicos da administração atual e provam “o bom trabalho da prefeitura”.  Trocando em miúdos, a prefeitura diz investir e privilegiar a cultura, enquanto, na realidade, produz entretenimento  nem um pouco barato para os cofres públicos  com intuito de mascarar os seus interesses eleitorais e a falta de compromisso com a comunidade. É a velha política do pão e circo.

Dona Neide e dupla Paulinho e Nininho
Apesar da decepção com a situação política da cidade e a fútil ostentação de poder da classe dominante que durante os dias de festa exibiu seus impecáveis figurinos de inverno em pleno sertão, muitos foram os episódios de contato direto e real com a cultura local. Foi muito agradável a sensação de cruzar com as pessoas mais simples e ouvi-las desejar “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”. Visitar amigos, familiares e desconhecidos, ser recebido com alegria, provar as comidas típicas de cada casa, conversar ao redor da fogueira, sentir a natureza ou simplesmente apreciar o céu fervilhando de estrelas que são invisíveis na capital. Em companhia da família, revisitando o pequeno povoado em que minha mãe morou quando criança, encontramos Dona Neide. Amável e receptiva, Dona Neide nos contou diversas histórias sobre os tempos do meu avô, nos ofereceu uma deliciosa canjica e nos presenteou com flores e frutas da sua própria roça. Mãe dos cantores Paulinho e Nininho, ainda cantarolou uma de suas composições e, com toda certeza, ficará na minha memória como protagonista de um dos dias mais bonitos que vivi.

Voltando a pensar a cultura e a música, acredito ter visto nessas férias os dois lados da moeda. Os modismos urbanos estão cada vez mais enraizados no interior e as tradições regionais, mesmo que fragilizadas, ainda se mantém com certo esforço e dedicação de alguns. Não que se trate um confronto vazio entre tradição e modernidade, mas há de se notar as consequências, prejuízos, vantagens e desvantagens de cada posição. Na verdade é ainda mais complexo que isso. Chega a ser paradoxal. A sensação "sertaneja" que o Brasil vive na atualidade causa uma falsa impressão de que a cultura do interior ultrapassou as barreiras do campo e agora circula sua essência livremente nos quatro cantos do país. Isso é enganoso porque todos esses segmentos musicais creditados erroneamente à cultura sertaneja como o forró e o sertanejo universitário, por exemplo, não correspondem ao forró e ao sertanejo de raiz, ou seja, a real cultura sertaneja continua escondida. Os comportamentos, as atitudes, o vocabulários e até mesmo o padrão radiofônico são importados das capitais e vem sendo impostos há um bom tempo ao interior pelos grandes empresários que, notando a mina de ouro que eram as pequenas cidades, levaram a sua tecnologia extraterrestre para lá. A ideia foi meramente unir alguns elementos da música tradicional às novidades da cidade, incrementar efeitos tecnológicos, visuais e, através de uma estrutura padronizada, ampliar o mercado e cruzar as divisas do país.

Por volta do início da década de 1990 não era difícil encontrar nas rádios as famosas baladas românticas que, mesmo contendo, às vezes, uma sanfona ou viola – o que era necessário para manter fiel o público do interior , não muito se diferenciavam das outras músicas pop do momento. O padrão musical utilizado nas rádios, por ser estruturalmente quadrado, repetitivo e previsível, sempre foi, inegavelmente, fácil de ser assimilado e apreciado (até mesmo por mim). O condicionamento da massa por este mesmo padrão, somado a um rótulo cultural anexado aos artistas em evidência, levou a música industrializada de volta ao interior. Na onda de absorção de hábitos urbanos, a música navegou com a sua Nau para terras distantes, “catequizou” e explorou os “povos primitivos”.

Recapitulando: a música tradicional foi corrompida pelas novidades vindas da cidade grande, transformou-se em produto radiofônico e conquistou as capitais, preservou determinados elementos regionais como forma de manter o público sertanejo fiel e voltou para o interior como representante cultural bem sucedido. A última parte dessa história, até o momento, é justamente a consequência desse retorno vitorioso aos braços conterrâneos. Não é difícil perceber que o número de artistas influenciados por esse passado recente é bastante considerável nas mídias de massa. Os jovens do interior ganharam ídolos e agora o país inteiro está de olho nos grandes “celeiros” musicais. A cada dia que passa é ainda maior a quantidade de novas estrelas e revelações oriundas do interior, pois o mercado é grande, o tempo é curto é preciso faturar enquanto a moda permite.

Luiz Gonzaga
O que está em questão não é o local nem a cultura em que nascem os artistas. Não se trata de dizer qual cultura é melhor ou pior, mas se trata de pensar no quanto nós temos nos submetido aos interesses industriais. Estamos perdendo toda a riqueza musical e cultural deixada por nomes como Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Renato Teixeira, Almir Sater e muitos outros em favor de segmentos que nada tem a ver com o que dizem ser, e muito menos com a universidade (me poupem!). Como disse antes, não é uma simples batalha entre tradição e modernidade, passado e presente, muito pelo contrário, o presente e o futuro são bem vindos, mas não se faz presente nem futuro sem passado. A ideia não é imitar e repetir aleatoriamente o que cantaram e disseram os gênios do passado, mas dar continuidade à música, à arte e, principalmente, à leitura do mundo e da própria humanidade.


PS: Faltam ainda inúmeras considerações sobre o São João e a forma que a festa vem sendo realizada nas capitais. Pretendo me debruçar sobre a cidade de Salvador e fazer uma nova postagem sobre o tema. Enquanto isso, vocês vão comentando o que acharam do texto, e eu prometo usá-los como base para a gente voltar a debater sobre o assunto novamente daqui a um ano, combinado? Então tá!

11 comentários:

  1. Olá, Clóvis! Gostei muito do seu texto e da análise, mas vc sabe que eu sempre tenho um ponto de vista pra trollar. heheeheheheheheheheheheeeeeee

    Rapaz,eu senti falta de uma palavra no seu texto. Aquela da moda, lembra qual é? Eu sempre esqueço!
    Brother, eu fiz um comentário tão estupido que criei um novo post por sua causa.

    http://juniosemr.blogspot.com/2011/07/respondendo-klaus.html

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  2. Parabéns irmão, orgulhando a família inteira :D

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  3. Espetacular seu blog! Nossa, que conteúdo maravilhoso vc divulga aqui, que originalidade, que banho de cultura vc nos dá... Primeira vez que venho aqui e confesso, fiquei abismado com a qualidade do trabalho que você desenvolve. Mais pessoas deveria fazer isso que faz, porque é isso que mantém nossa cultura viva!

    NOTA MIL!

    http://estacaoprimeiradosamba.blogspot.com/

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  4. "o presente e o futuro são bem vindos, mas não se faz presente nem futuro sem passado".Com esse fragmento quero ressaltar a necessidade que temos de dar visibilidade aos diversos elementos humanos e culturais presentes e passados que formam a nossa sosciedade,como instrumentos que contribuem para a reflexão acerca dos diversos problemas que permeiam a nossa convivencia social.

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  5. Parabens Klaus, é o mesmo sentimento que eu tive quando visitei Tacaratu. Tacaratu parece Roma, 2000 anos depois. Obrigado pelo lindo texto. Guido

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  6. Parabéns pelo texto Klaus! Gostei muito! Com objetividade e naturalidade vc consegue expressar a simplicidade de uma pequena cidade, do que significa as raizes de um povo que sofre,mas que estão sempre com um sorriso no rosto. Parabéns por cada tópico abordado aqui e que um dia quem sabe, todos possam ter a mesma sensibilidade de falar e de manter a arte e a cultura desse país viva em todos os aspectos, como você citou, com presente, futuro, porém sem perder a essência do passado.

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  7. Junio, conferi sua resposta e acho que não divergimos tanto assim nas opiniões. A globalização e os interesses econômicos e eleitorais, com certeza, fazem parte desse processo.

    Hanelore, Maria e Guido, vocês dividiram comigo as experiências em Tacaratu e graças às nossas conversas, muitas das reflexões escritas aqui foram possíveis. Obrigado!

    Sandro, fiquei muito honrado com suas palavras. Atitudes como a sua, de não apenas ler, mas também comentar, são muito importantes para manter a cultura. Ela não morrerá enquanto lembrarmos e falarmos sobre ela. Brigadão!

    Aninha, sempre fico muito feliz com suas contribuições. Não sei se você percebeu, mas algumas de nossas conversas também vieram parar aqui. Obrigado por acompanhar essa jornada e fazer parte dela.

    Muito obrigado a todos!

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  8. Apesar de ser agnóstico achei aquela Igreja mt bonita...

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  9. Bem legal o post
    Visita-me
    http://kroghaar.blogspot.com/
    Beijos no polegar

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  10. Gostei demais do seu texto. Muito rico em detalhes. Vc fala da cultura local, do incentivo cultural por parte da Fundarpe e até do modismo que se torna até engraçado visto o contexto que está inserido.
    Adoro São João, forró e os demais ritmos nordestino (o da raiz nordestina). Amo o clima interiorano para passar uns dias, curtir esse tipo de festa. Se as pessoas ccurtissem tanto quanto eu curto não se preocupariam em colocar roupas de grife nem se aqueceriam como se estivessem no inversno europeu.

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  11. Adorei teu blog.
    Estava "viajando" nele...
    Música faz bem...
    bjos
    http://draclaudiabenevides.blogspot.com

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